Carros elétricos chegaram para ficar

Carros elétricos chegaram para ficar

Mobilidade elétrica dá um passo importante no Brasil

Antes de dormir, carregar o celular. Essa é uma tarefa habitual nas casas brasileiras. No país, existem mais celulares que pessoas: são cerca de 200 milhões de brasileiros para 243 milhões de linhas. Em poucos anos, na lista de aparelhos a serem carregados na tomada durante a noite também estarão os carros. Os veículos elétricos já são uma realidade no Brasil, mas em pequena escala. Dados da Fundação Getúlio Vargas (FGV) apontam a existência de 2,5 mil veículos desse tipo no país, número baixo quando comparado ao total da frota nacional de 92 milhões de veículos — segundo o Departamento Nacional de Trânsito.

Essa realidade deve mudar em breve. As discussões sobre a inserção dos veículos elétricos em larga escala, substituindo os automóveis a combustão, estão avançadas no mundo. O diretor de Desenvolvimento Produtivo e Tecnológico da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), Miguel Nery, indica que o assunto está na agenda do Brasil. “Depois da assinatura do acordo climático de Paris e várias nações anunciarem a extinção da produção de veículos movidos a combustíveis fósseis em um curto período de tempo — entre 2025 e 2030 –, é impensável imaginar que o Brasil não vá participar dessa mudança”.

A ABDI, aliada ao Ministério da Indústria, Comércio e Serviços, tem discutido com o setor automobilístico a introdução do modelo elétrico em larga escala. Um grupo de trabalho formado por montadoras, setores de autopeças, trabalhadores e governo tem trabalhado na construção de um consenso. O colegiado integra as discussões do programa Rota 2030, que vai desenhar as diretrizes do setor para os próximos 15 anos. A política vai definir desde questões fiscais até requisitos voltados à segurança dos veículos. “Os desafios são grandes, mas aos poucos estão sendo superados, é o que mostra a experiência internacional”, destaca Nery.

O país com maior número de carros elétricos em relação ao total de veículos é a Noruega. Lá, um em cada quatro carros circulando nas ruas é elétrico. Na Holanda, segundo país da lista, 10% da frota é elétrica. Outros quatro europeus — Suécia, Dinamarca, França e Reino Unido — e a China têm 1% dos veículos movimentados a eletricidade.

O carro elétrico ainda tem alto preço, custando mais de R$100 mil no Brasil. O que mais onera a produção é a bateria, que representa de 30 a 50% do valor total do veículo. Mas a tendência é de queda à medida que a produção ganhe escala. “As projeções apontam que a partir de 2022 a produção vai aumentar, diminuindo substancialmente o custo das baterias”, indica o diretor da ABDI.

As baterias de carros elétricos podem ser produzidas com alguns tipos de materiais, como níquel, lítio e sódio. Devido ao menor custo e melhor rendimento, o lítio é a liga mais utilizada. Mas essas baterias específicas para carros ainda estão em pleno desenvolvimento, tendo como maior produtora a chinesa BYD.

No Brasil, os estudos para a produção de baterias de lítio já começaram. A grande fabricante nacional do produto — mas para carros a combustão –, Moura, tem planos de desenvolvimento. Segundo o gerente de negócios da empresa, Juliano Mendes, independente do modelo de bateria que for adotada pelos veículos elétricos produzidos no país, a empresa fornecerá a solução. “Para a produção de baterias de lítio, estamos trabalhando na concepção dos packs, que são o primeiro passo para desenvolver a bateria por completo”. São duas fases principais de produção, o pack e a célula, e pelo planejamento da Moura, as células serão importadas até a demanda chegar em nível suficiente para produção interna.

A bateria, além de ser decisiva no preço do veículo elétrico, também passa a ser o coração desse tipo de automóvel. Se hoje, a autonomia do veículo é dada principalmente pelo desempenho do motor, nos elétricos ela definirá a quilometragem que o carro está apto a fazer. “Esse é um entrave que vem sendo superado com pesquisa”, aponta o diretor da ABDI, Miguel Nery. “A média de autonomia do carro elétrico vem evoluindo, hoje é possível falar em mais de 200 quilômetros, sendo que as pessoas nas grandes cidades não andam mais que 100 quilômetros em um dia”.

O publicitário Rodrigo de Almeida, que é vice-presidente da Associação Brasileira dos Proprietários de Elétricos Inovadores, pertence aos pouco mais de dois mil brasileiros que têm um elétrico na garagem. O BMW I3 foi adquirido em junho de 2016, seu pequeno tanque para gasolina, de apenas nove litros, quase não foi utilizado em um ano de direção. “Eu rodo 30 quilômetros por dia, e recarrego duas vezes durante a semana. Uma vez na garagem do meu trabalho, em uma tomada convencional 220, e outra no shopping perto da minha casa, com um carregador semirrápido”, explica Almeida.

Na tomada convencional, o veículo atinge 80% da carga em seis horas. Quando o elétrico chega a esse nível, automaticamente reduz a tensão energética do recarregamento para não sobrecarregar a bateria. Então, o tanque “fica cheio” com mais duas horas de tomada. Com 100% da carga, a autonomia de direção é de 160 quilômetros, e na carga semirrápida são 2h e 30 minutos para os 80% e 3h e 30 minutos para 100%. Almeida relata que em pouco mais de um ano de uso, foram percorridos 17 mil quilômetros, com gasto seis vezes menor do que o de um carro a gasolina. “O carro gasta para rodar R$0,07 por quilômetro, rende, então, 57 quilômetros por litro se feita a comparação com a gasolina”. Um carro a combustão faz entre 10 e 18 quilômetros.

RECARGA SEM FIO

  • Wireless parado — pode carregar em velocidade rápida ou semirrápida. Não precisa ligar na tomada, é carregado por aproximação.
     
  • Wireless em movimento — um projeto piloto na Inglaterra fez uma estrada com vários carregadores wireless, sem a necessidade parar, o que permite uma viagem sem gasto de bateria.

No meio ambiente também há diferença, porque a redução de resíduos é grande. Em um ano, deixam de ser jogados na atmosfera cerca de duas toneladas de poluentes. No carro elétrico a emissão é zero. Com esses benefícios, o veículo tem mercado para crescer, segundo a pesquisadora da FGV-Energia Tatiana Bruce, que foi uma das responsáveis pelo caderno Carro Elétrico publicado neste ano. Ela defende que esse é o veículo do futuro. “Tanto pela sustentabilidade, como pela tecnologia, a demanda vai se criar. A Tesla (fabricante de veículos) anunciou no ano passado o modelo mais barato do mundo e 400 mil pessoas se inscreveram para comprar, sendo que o veículo que nem existia”, lembra a pesquisadora. O anúncio da empresa americana foi feito em abril de 2016 e os primeiros 30 veículos foram entregues em julho deste ano. O Model 3 tem autonomia de 350 quilômetros e custa cerca de US$ 35 mil dólares (R$110 mil).

Impacto ambiental

A eficiência desses carros chama atenção. “Enquanto a gasolina consegue transformar apenas 18% em energia, no elétrico 90% da energia que entra no veículo se transforma em movimento”, destaca Tatiana. Quase 82% da gasolina, álcool ou diesel se perde em calor e poluentes nos motores a combustão. Mas a situação não se resolve com a troca da frota veicular, é preciso analisar a matriz energética do país. A China, por exemplo, tem a maior produção de veículos elétricos em números brutos. “O problema é que energia elétrica chinesa é gerada por carvão, causadora de poluição. Para o Brasil é uma boa opção porque a maior parte da eletricidade vem de hidrelétricas, uma energia limpa”, aponta Tatiana.

A extração de lítio — matéria prima das baterias — é outra questão a ser analisada. A mineração do metal tem impactos ambientais importantes. Cálculos feitos pela FGV apontam que os veículos elétricos emitem entre 15% e 68% a mais de gases de efeito estufa que a produção de um automóvel convencional. Entretanto, o documento reitera que essa desvantagem é recuperada em no máximo 18 meses de circulação do carro elétrico. “À medida que a demanda de lítio aumentar, será desenvolvida tecnologia para extração, diminuindo o impacto ambiental”, destaca Tatiana Bruce. “As baterias de lítio dos elétricos podem ser recicladas para outros aparelhos, o que é uma grande vantagem”.

Mobilidade urbana

Atualmente, as fábricas no Brasil ainda não produzem carros elétricos ou baterias de lítio. Já os ônibus elétricos circulam em cidade brasileiras desde a década de 1960. Os trólebus são aqueles coletivos que andam ligados por um cabo à rede elétrica. “Um motor elétrico traciona o veículo, as alavancas no teto carregam a eletricidade até o conjunto de baterias do ônibus”, explica a gerente comercial da Eletra Industrial, Ieda de Oliveira. A empresa brasileira, nascida em 1988, produz ônibus elétricos de vários tipos.

O primeiro foi o trólebus, que tem como única diferença dos elétricos puros a autonomia da bateria. O “ônibus cabeado” consegue andar até sete quilômetros com velocidade controlada sem ligação aérea com a rede elétrica. Nos trajetos feitos pelos coletivos da Eletra, na Grande São Paulo, os ônibus não ficam mais do que um quilometro sem conexão direta às linhas de energia. No veículo são utilizadas 48 baterias de chumbo fabricadas pela Moura, as mesmas dos carros comuns. Entre os elétricos, o trólebus é a alternativa mais barata — o preço é 15% melhor que de um híbrido, por exemplo –, mas é necessário investimento na rede elétrica (em média R$3 milhões por quilometro do corredor de ônibus).

No Híbrido Série da Eletra há um gerador a diesel, gasolina, álcool ou gás natural que transmite energia para o motor elétrico. “Esse desenho de engenharia permite um desempenho melhor do veículo. Ele reduz 95% da emissão de material particulado, em relação ao veículo convencional, e consome entre 28% e 30% a menos de combustível”, destaca Ieda. Quando é dada a partida, o motor a diesel começa a operar em rotação constante, e assim permanece até o desligamento. Como não há acelerações, a emissão de gases poluentes na atmosfera é mínima. Quando o veículo para, para entrada ou saída de passageiros, o motor-gerador recarrega as baterias.

Ainda existe o Elétrico Puro, com autonomia de 250 quilômetros. O custo dele é duas vezes o de um ônibus a combustão, mas o gasto com diesel é zero, e a emissão de poluentes também inexiste. Nesse, é preciso investir em infraestrutura de recarga nas garagens. “Quando se pensa nos veículos maiores, como aqueles ônibus articulados, é possível programar recargas de oportunidade”, explica Ieda. Fora dos horários de maior movimentação de passageiros, os coletivos param nos terminais por 10 a 15 minutos, onde fazem uma recarga rápida. No ônibus lançado pela Eletra, em 2014, com quatro recargas de 5 minutos durante o dia o veículo garante uma rodagem de 180 quilômetros.

Outra mudança promovida pelos veículos elétricos diz respeito à pilotagem. O primeiro impacto é a falta de marchas e barulho. Do ponto de vista da tecnologia, existe um grande avanço. A frenagem dos veículos representa entre 33% e 40% da energia utilizada pelo próprio automóvel. Sempre que o veículo começa a parar, ele gera uma energia cinética, que retorna para o motor como “combustível”. Na Fórmula 1, o Sistema de Recuperação de Energia Cinética — KERS — foi implantado em 2010, e representa um turbo nos carros. Nos ônibus elétricos o sistema já estava em operação no fim da década de 1990.

Para o diretor de Desenvolvimento Produtivo e Tecnológico da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial, Miguel Nery, a evolução não pode ser freada. “Teremos que substituir toda a nossa frota de transporte público em algum momento. Sejam ônibus, carros elétricos, veículos leves sobre trilhos ou trólebus. Teremos que ter instrumentos nas cidades brasileiras que permitam isso”.

Os desafios são grandes, mas o carro elétrico já é uma realidade, e com ele vem uma mudança de conceito sobre a própria mobilidade. A Alemã BMW já fala em vender quilometragem, não mais carros, o que seria um novo modelo de negócio. “O veículo elétrico já se apresenta de forma robusta, e vai ser a tecnologia automotiva predominante no mundo. O Brasil vai adaptar sua cadeia produtiva enfrentando os desafios”, acredita Nery.